terça-feira, 5 de dezembro de 2017

A comunhão dos 'recasados' foi declarada Magistério pelo Papa Francisco?

Em Setembro de 2016 foi revelada uma carta escrita por um grupo de Bispos da Região Pastoral de Buenos Aires ao Papa Francisco com as directivas que planeavam usar para aplicar a Exortação Apostólica Amoris Laetita nas suas dioceses. No parágrafo 6 dessa carta encontrava-se contemplada a possibilidade de admitir aos sacramentos os 'divorciados recasados', nalguns "casos difíceis". 

Esta prática sempre foi considerada contra a doutrina da Igreja, e foi condenada explicitamente pelos dois Papas anteriores: João Paulo II e Bento XVI. Nessa altura foi também divulgada a resposta privada do Papa Francisco a essa carta, na qual o Papa congratulava os seus autores e dizia que aquele era o único modo de interpretar o polémico capítulo VIII da Amoris Laetita.


Em Agosto de  2017 a carta desses Bispos argentinos, juntamente com a resposta do Papa, foram publicados no site da Santa Sé. Isto causou um certo mal-estar entre muitos católicos. No entanto a situação não ficou por aí: há poucos dias veio a público que a dita carta e a resposta do Papa foram publicadas, em Outubro de 2016, na Acta Apostolicae Sedis, o boletim que regulamenta a promulgação e divulgação de leis e actos da Santa Sé. Além disso, esses dois documentos, por vontade do Papa, passariam a ser considerados "Magistério Autêntico". O que é que tudo isto quer dizer? Deixamos aqui a análise feita por um excelente canonista, Dr. Edward Peters, no seu site 'In the Light of Canon Law':


Há três meses eu previ que a carta do Papa Francisco aos bispos da Argentina, que aprova a sua implementação da Amoris Laetitia viria a encontrar lugar na Acta Apostolicae Sedis. Agora já o tem. Numa nota que a acompanha, escrita pelo Cardeal Parolin é-nos dito que o Papa deseja que o documento argentino tenha “autoridade magisterial” e que esta sua resposta, portanto, tem o estatuto de “carta apostólica”.  Muito bem, Vamos então analisar alguns pontos.

1. O Cânone 915. É essencial perceber que aquilo que hoje impede os ministros da Santa Comunhão de distribuírem a Eucaristia aos católicos “divorciados-e-recasados” é este Cânone 915 e a sua interpretação universal e unânime que este texto legislativo, que é baseado na lei divina, sempre teve. Este Cânone e os valores sacramentais e morais fundamentais em que está baseado podem ser esquecidos, ignorados ou ridicularizados, mesmo da parte de altas entidades na Igreja, mas a não ser e até que este Cânone seja revogado ou modificado por uma iniciativa legislativa papal ou que seja efectivamente anulada por uma “interpretação autêntica” (Código do Direito Canónico 1983, n.16) o Cânone mantém-se e, mantendo-se, obriga os ministros da Sagrada Comunhão.

Nem a carta do Papa aos bispos argentinos nem a carta dos bispos argentinos em si, e nem mesmo a Amoris Laetitia menciona o Cânone 915, nem tampouco nenhum destes documentos abroga, derroga ou interpreta autenticamente esta norma do Código do Direito Canónico. Tendo isto como certo, pouco ou nada nestes documentos se refere ao Cânone 915 e este silêncio que existe nestes dias sobre este Cânone, aparentemente táctico ou planeado, é causa de uma preocupação pastoral grave. No entanto, a lei não esmorece por ser deixada em silêncio.

2. Carta apostólica. Uma “carta apostólica” é uma espécie de mini-encíclica e, independentemente do valor que as encíclicas possam ter pelo seu valor exortativo ou doutrinal, elas não são (salvo raras excepções) textos legislativos usados para formular novas normas legais. Tipicamente as “cartas apostólicas” são escritas a pequenos grupos da Igreja e tratam questões mais limitadas – não questões de relevância para todo o mundo como a questão de admitir os católicos “divorciados-e-recasados” à Sagrada Comunhão. Mesmo no caso de “cartas apostólicas” especiais que são usadas para fazer alterações à lei – como o fez João Paulo II em Ad tuendam fidem (1998), Bento XVI em Omnium in mentem (2009) e Francisco em Magnum Principium (2007) – a “carta apostólica” usada nestes casos tem uma designação adicional, que é de “motu proprio” (que significa da iniciativa do Papa e não em resposta à acção de outrem) e as mudanças que são feitas à lei são aí expressamente identificadas pelo número do Cânone, não são simplesmente implícitas ou supostas, especialmente não o são pelo seu silêncio.

A carta do Papa aos bispos argentinos surge-nos simplesmente como uma “carta apostólica”, não como uma “carta apostólica motu proprio” e não faz qualquer referência a Cânones.

3. Magistério autêntico. Muita gente usa o termo “magistério” como se isso fosse o equivalente a dizer “a autoridade governante da Igreja”, mas no seu sentido canónico “magistério” é usado para referir para a autoridade da Igreja de emitir ensinamentos em questões de fé e moral, não para referir a autoridade da Igreja para compelir disciplina relativamente a questões de fé e moral.

Enquanto o Papa Francisco – ainda que da maneira mais indirecta possível (por uma nota a um funcionário de um dicastério relativa a uma carta escrita por uma conferência episcopal) – indica que a sua carta aos bispos argentinos e que a própria carta da conferência argentina em si são “magistério”, o facto mantém-se em que o conteúdo de qualquer documento da Igreja, para que seja considerado de maneira própria como “magistério” tem de ser relativa a declarações sobre fé e moral, não provisões para questões de disciplina relacionadas com a fé e a moral. Os documentos da Igreja podem ter ao mesmo tempo passagens “magisteriais” e “disciplinares”, está claro, mas geralmente apenas as partes relacionadas com o ensinamento, a doutrina desses mesmos documentos são considerados canonicamente como “magistério”, enquanto que as partes normativas desses documentos são consideradas “disciplinares”.

Na minha opinião, o Papa Francisco designou de forma muito lata outras das suas visões enquanto tendo “autoridade magisterial (lembremos os seus comentários sobre o movimento litúrgico), e ele não é o único a fazer, de tempos a tempos, comentários estranhos sobre o uso do poder papal (lembremos João Paulo II invocando “toda a (sua) autoridade Apostólica” para actualizar as leis de um grupo de trabalho pontifício em 1999).

Este uso inconsistente das palavras apenas destrói o princípio de que todos nós devemos tentar ler este tipo de documentos de acordo com a maneira como a Igreja normalmente os escreve (desejava que fosse sempre, mas contento-me com o normalmente) e perguntar: Há declarações “magisteriais” na Amoris Laetitia, na carta dos bispos de Buenos Aires e na resposta do Papa Francisco? Sim. Muitas, que se dividem em várias gamas, desde as que são obviamente verdadeiras, que são verdadeiras mas escritas-de-forma-estranha-ou-incompletamente-fraseadas, a umas poucas que, ainda que contendo a capacidade de serem entendidas num sentido ortodoxo, são formuladas de forma que se abrem a interpretações heterodoxas (e por esta razão devem ser clarificadas para o bem do bem comum eclesial).  

De qualquer das formas, estas declarações doutrinais, pelo facto de fazerem afirmações sobre fé e moral e virem de bispos e/ou Papas que estão a actuar enquanto bispos ou Papas têm já algum (muito pouco) nível de valor enquanto magistério ordinário, um valor que não é aumentado pelo facto de lhe colarmos a etiqueta “magistério”.

Segunda pergunta, há declarações “disciplinares” na Amoris Laetitia, no documento dos bispos de Buenos Aires e na carta de resposta do Papa Francisco a este documento? Sim, algumas. No entanto, como eu disse outrora, parece-me (n.ed.: enquanto canonista) que nenhuma destas declarações disciplinares é suficiente para revogar, modificar ou derrogar o Cânone 915, que como foi assinalado acima, proíbe a administração da Sagrada Comunhão para os católicos “divorciados-e-recasados”, mesmo aquelas declarações que são mais ambíguas e capazes de deixar a porta aberta para práticas inaceitáveis.

Conclusão. Eu desejaria que o Cânone 915 não fosse o único baluarte de defesa contra o abandono da Eucaristia ao arbítrio das consciências individuais, tantas vezes mal formadas. Eu desejaria que houvesse o um vivo sentimento movido pelo impulso pastoral quanto à premência libertadora do matrimónio cristão, quanto à necessidade universal da Confissão para a reconciliar aqueles que estão em pecado grave, quanto ao poder que tem a Eucaristia para alimentar as almas em estado de graça e quanto à condenação daqueles que a recebem irreverentemente. Tudo isto faria que fosse desnecessário invocar o Cânone 915 na prática pastoral, mas ao que parece em grande parte do mundo católico nos dias de hoje não é isso que observamos, pelo que o Cânone 915 tem de ser apontado como se fosse a única razão pela qual não é possível receber a Sagrada Comunhão nas situações apontadas.

Mas que poderemos então dizer? A não ser que o Cânone 915 seja directamente revogado, esvaziado ou tornado ineficaz ele obriga os ministros da Sagrada Comunhão que este augusto sacramento seja impedido àqueles que, entre outros, estejam na situação de católicos “divorciados-e-recasados” à excepção daqueles casais que vivem como irmãos sem causar escândalo à comunidade.

Nada do que vi até hoje, incluindo o facto de aparecer na Acta Apostolicae Sedis as cartas dos bispos argentinos e a resposta do Papa, faz-me pensar que o Cânone 915 tenha sofrido tal destino.

Tradução: Senza Pagare


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1 comentário:

João Pedro disse...

Nenhum Papa pode elevar a Sua opinião pessoal (cfr. 'Amoris laetitia, nn. 3 e 4) a Magistério autêntico da Igreja.
Mesmo que pudesse, nenhum Papa pode fazê-lo por acto meramente administrativo, como é um rescrito.
Cfr. CIC 1983, cân. 59, § 1: "Rescrito é o acto administrativo exarado por escrito pela competente autoridade executiva, pelo qual, de sua natureza, a pedido de alguém, se concede um privilégio, uma dispensa ou outra graça."
Convém ter isto bem presente para evitar mais confusões sobre assunto tão grave...