quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Inquisição à luz da doutrina de S. Tomás de Aquino (1)

A inquisição é um dos temas mais controversos da História medieval. Este estudo tenta torná-la mais clara, lançando sobre ela a luz da doutrina de Santo Tomás quanto a natureza das relações Estado-Igreja, quanto a natureza da sociedade política.

Em primeiro lugar ressaltemos alguns princípios de análise histórica fundamentais para compreendermos a inquisição.Já dizia o filósofo Dilthey que uma das disposições mais próprias para conhecermos uma época passada é a empatia.A empatia é identificação com o objecto de estudo. Consiste em penetrar nele para poder compreendê-lo.Mas como penetrar num objecto do passado, numa sociedade morta? 

A forma mais viável é a tentativa de reconstruir a mentalidade da época e colocar-se no lugar dos actores humanos, sermos possuídos pelas suas vivências, amores, temores, desejos, imaginários, formas de vida, organização política, leis. Esse método é o mais válido para entendermos uma sociedade do passado nos seus próprios termos, sem desrespeitá-la, sem tentar dar-lhe um significado ou qualificativo baseado numa leitura da História à luz de um futuro ou de um presente, como fazem as leituras marxistas e liberais da História que vêem o passado em função do progresso das liberdades ou da igualdade no presente. Segundo esta visão o passado é tido apenas como mero tempo preparatório para uma época superior ou melhor, ou como era de estagnação como fazem por exemplo quando qualificam a idade media de idade das trevas.

Vamos então à visão de mundo do século XIII, século em que nasceu a inquisição, percorrendo o pensamento político de S. Tomás. A instituição inquisição obedecia aos critérios colocados pelo Doutor Angélico.

Primeiro é preciso dizer que S. Tomás se diferencia do pensar de S. Agostinho, que via o Estado como uma instituição directa de Deus, ligada ao pecado original: o Estado nasce da necessidade de impor um lei que facultasse o convívio entre os homens e o respeito a justiça através do uso da violência institucionalizada para a repressão dos maus. S. Tomás vê o estado como questão humana, ligado a providência divina de modo geral e dependente da razão: Deus não institui o Estado directamente mas deixa aos homens que organizem a sociedade política, por meio da razão, deixando à Igreja o cuidado da salvação das almas. 

Neste sentido a sociedade política (Estado) deve levar em conta a lei divina na sua organização legal, mas também o direito natural, perscrutado pela razão, e os costumes dos povos. Tudo isto em vista do Bem, tal como pode ser realizado nesta terra. Ao Estado cabe criar leis positivas (escritas) com base em três fontes: Lei de Deus, razão humana e história. Assim, serão uma aplicação concreta a cada situação histórica da lei divina e eterna e da lei natural. 

S. Tomás vale-se então do exemplo do Pentateuco (os cinco primeiros livros da Sagrada Escritura) onde Moisés, o divino legislador do povo hebreu, ao receber a lei divina institui uma série de regras positivas de pureza, impureza, legalidade, ilegalidade, adequadas aos estado histórico do povo de Israel. É de notar que a lei divina proibia o assassinato, mas Moisés permitia em certos casos a aplicação da pena de morte (em caso de adultério, actos homossexuais, etc..) para certos actos previstos na lei como criminosos. Alguns poderiam perguntar se tal instituto legal estabelecido por Moisés não feria a lei divina do respeito absoluto pela vida humana, presente no Decálogo (dez mandamentos), ao que responderíamos que bem pelo contrário: as penas de morte estabelecidas pela lei mosaica atendiam as necessidades pedagógicas do povo de Israel naquela época e a cultura jurídica da mesopotâmia baseada amplamente na lei do talião. 

Para um povo recém formado e sem raízes éticas firmes, tendente à idolatria e à desobediência da lei recém-outorgada por Deus no Monte Sinai, o uso de penas capitais era a única forma de garantir a unidade e a ordem mínima necessária para o seu desenvolvimento histórico. Moisés levou em conta os costumes da época para legislar, e não apenas a lei divina tomada abstractamente. Aplicou as circunstâncias históricas sem ferir o espírito essencial. 

As penas capitais eram usadas para garantir a vida do povo e a sua continuidade, ou seja, em função do princípio de legítima defesa. Qualquer pessoa que mata em legítima defesa não pratica assassinato pois visa primeiro a defesa da sua vida. Portanto aplica ao caso concreto a máxima divina: “Não matarás”, pois a primeira vida que se deve defender é a própria. Moisés ao instituir penas capitais na lei hebraica fazia valer o princípio de defesa do bem geral do povo ou do bem comum, tão bem elucidado por S. Tomás. 

O bem comum não é o somatório dos interesses individuais, como diria Rosseau (com a sua tese da vontade geral), mas sim o bem de toda pessoa humana feita a imagem de Deus. Assim sendo, quando uma pessoa fere a justiça, que deve reger sua conduta em sociedade, pode ser castigada para restaurar a ordem. Note-se que o bem comum não é uma noção individualista. Para os pensadores liberais qualquer acção contra a liberdade do indivíduo é sempre negativa, sendo que para eles a melhor sociedade seria aquela em que os indivíduos estivessem menos “limitados” por uma lei. 

O bem comum é um princípio segundo o qual a pessoa deve ordenar sua acção em função do Sumo Bem e não das suas vontades individuais. Para o liberal não há um Sumo Bem mas apenas a soma das vontades e interesses individuais – essas é que deveriam ser o critério da lei. A noção de Sumo Bem e de bem comum estão relacionadas: implicam a certeza da existência de uma ordem inteligível pela razão à qual o homem deve submeter a sua vontade para a realização das suas virtudes naturais e de sua autêntica liberdade e felicidade. 

Postos tais princípios continuaremos a tratar do assunto na segundo parte do artigo, que se encontra aqui: Segunda parte

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1 comentário:

Dina Emanuel disse...

Embora este artigo tenha suscitado uma grande discussão e ainda tenha a conotação de politicamente incorrecto, deixo aqui um artigo, que curiosamente, foi publicado ontem, e que vem precisamente na mesma linha de pensamento: esclarecer o contexto histórico da Inquisição, para desfazer mitos e aprofundar a verdade. Quem quiser ler, espreite aqui: http://www.acidigital.com/noticias/sacerdote-brasileiro-motiva-a-entender-a-inquisicao-a-luz-do-seu-contexto-historico-mais-amplo-56429/